Espomante é a contracção contraditória de esposo com amante. Com efeito, este estado de espírito é utópico porque está em contradição com o estado de realidade dentro do qual ocorre. Para a sociedade de Serrano, em particular, e para a sociedade em geral, existe uma grande diferença entre “marido e mulher” e amante e amante. No primeiro caso, é o amor consentido, o amor burocrata, o amor entre Jerónimo e Maninha. Resume-se todo no amplexo que o sacramento consente e ordena – na produção dos filhos: “Crescei e multiplicai-vos! – “[1]limitando-se a imitar a atitude dos bois, dos cães e dos cavalos”. Os esposos dignos, como Jerónimo (homem de princípios), devem respeitar-se até mesmo no delicioso momento em que os seus corpos se unem num feixe palpitante de carne e nervos. Devem ser comedidos no prazer, reservados na loucura: devem refrear os sentidos, abafar os suspiros… “[2]Beijos não.”. Os esposos não dignos, como Valentim (“[3]homem que vivia com Gremiana desde os treze anos”), gabam-se da “sua virilidade e a pouca serventia da companheira”, mal tratam a mulher, oferecem a vida íntima dos dois aos pais, “[4]irmãos, amigos, inimigos e parentes e os demais companheiros, velhos e novos, escorreitos e desarticulados, sóbrios e bêbados”.
O amor dos amantes, é pelo contrário, livre; livre de todas as peias, de toda a hipocrisia. Não tem que guardar reservas: pode beijar as bocas, os corpos todos… É a liberdade na paixão. A Louca de Serrano explica este estado de espírito nas “[5]cerimónias onde homem não conhecia esposa, e mulher não tinha marido, e os corpos não tinham dono e eram apenas e somente a carga que carregavam sem nome ou marca que denunciasse a origem, a espécie e o destino”.
É por isso mesmo que os esposos que se amam como esposos, se não amam. É por isso que o marido tem amantes… que a sua mulher lhe segue muita vez o exemplo… É por isso que o casamento de Genoveva com Sílvio passou “[6]da vulgar paixão à amizade que sobrou".
Ricardo Afonso Vilela
[1] A Louca de Serrano, Dina Salústio, Autor e Spleen-Edições, página 108.
[2] A Louca de Serrano, Dina Salústio, Autor e Spleen-Edições, página 109 e 110.
[3] A Louca de Serrano, Dina Salústio, Autor e Spleen-Edições, página 64.
[4] A Louca de Serrano, Dina Salústio, Autor e Spleen-Edições, página 65.
[5] A Louca de Serrano, Dina Salústio, Autor e Spleen-Edições, página 23.
[6] A Louca de Serrano, Dina Salústio, Autor e Spleen-Edições, página 185.