Tudo o que vem à rede é peixe

28
Mai 07

Introdução

Jorge Dias foi “a figura dominante da antropologia em Portugal desde os fins dos anos quarenta até à sua morte (1973) e mesmo para além dela.

O estudo de que retirámos os excertos presentes, datado de 1950, situa-se no âmbito da antropologia cultural, na sua vertente de etnopsicologia e etnosociologia, correspondendo a uma das vertentes mais importantes da obra de Jorge Dias, a qual não circunscreve os seus estudos  aos aspectos puramente formais e abstractos da vida do homem, procurando, neste caso, a compreensão da personalidade base do seu povo, tentanto captar o fundo temperamental dessa mesma personalidade, para lá das formas e instituições em que se cristalizou. Procura, por isso, determinar não os múltiplos aspectos de que a nossa cultura se resveste, mas o que para além dela adquire uma feição permanente, resistindo ao tempo e às transformações morfológicas e ideológicas.

É esse fundo temperamental que selecciona os múltiplos elementos da cultura, porque, como diz Jorge Dias, aponta para uma “sensibilidade específica”, que se constitui não no tempo breve mas no tempo da longa duração, amalgamando e sublimando contribuições heterogéneas, permitindo-nos falar de um grau relativo de homogeneidade, constituído ao longo da história, independentemente de regionalismos vários ou de distincões sociais de classe que podem agir separadamente.

Caracterização psicológica do povo Português


“ O Português é um misto de sonhador e de homem de acção, ou melhor, é um sonhador activo, a que não falta certo fundo prático e realista. A actividade portuguesa não tem raízes na vontade fria, mas alimenta-se da imaginação, do sonho, porque o Português é mais idealista, emotivo e imaginativo do que homem de reflexão. Compartilha com o Espanhol o desprezo fidalgo pelo interesse mesquinho, pelo utilitarismo puro e pelo conforto, assim como o gosto paradoxal pela ostentação de riqueza e pelo luxo. Mas não tem, como aquele, um forte ideal abstracto, nem acentuada tendência mística. O Português é, sobretudo, profundamente humano, sensível, amoroso e bondoso, sem ser fraco. Não gosta de fazer sofrer e evita conflitos, mas, ferido no seu orgulho, pode ser violento e cruel. A religiosidade apresenta o mesmo fundo humano peculiar ao Português. Não tem o carácter abstracto, místico ou trágico próprio da espanhola, mas possui uma forte crença no milagre e nas soluções milagrosas.

Há no Português uma enorme capacidade de adaptação a todas as coisas, ideias e seres, sem que isso implique perda de carácter. Foi esta faceta que lhe permitiu manter sempre a atitude de tolerância e que imprimiu à colonização portuguesa um carácter especial inconfundível: a assimilação por adaptação.

O Português tem um vivo sentimento da Natureza e um fundo poético e contemplativo estático diferente dos outros povos latinos. Falta-lhe também a exuberância e a alegria espontânea e ruidosa dos povos mediterrâneos. É mais inibido que os outros meridionais pelo grande sentimento do ridículo e medo da opinião alheia. É, como os Espanhóis, fortemente individualista, mas possui grande fundo de solidariedade humana. O Português não tem muito humor, mas um forte espírito crítico e trocista e uma ironia pungente.

A mentalidade complexa que resulta da combinação de factores diferentes e, às vezes, opostos dá lugar a um estado de alma sui generis que o Português denomina saudade. Esta saudade é um estranho sentimento de ansiedade que parece resultar da combinação de três tipos mentais ditintos: o lírico sonhador – mais aparentado com o temperamento céltico -, o fáustico, de tipo germânico, e o fatalístico, de tipo oriental. Por isso, a saudade é umas vezes um sentimento poético de fundo amoroso ou religioso, que pode tomar a forma panteísta de dissolução na Natureza ou se compraz na repetição obstinada das mesmas imagens e sentimentos. Outras vezes é a ânsia permanente da distância, de outros mundos, de outras vidas. A saudade é então a força activa, a obstinação que leva à realização das maiores empresas; é a saudade fáustica. Porém, nas épocas de abatimento e de desgraça a saudade toma uma forma especial, em que o espírito se alimenta morbidamente das glórias passadas e cai no fatalismo de tipo oriental, que tem como espressão magnífica o fado, canção citadina, cujo nome provém do étimo latino fatu (destino, fadário, fatalidade).

Este temperamento paradoxal explica os períodos de grande apogeu e de grande decadência da história portuguesa. Ao contrário do que muitos disseram, o Português não degenerou; as virtudes e os defeitos mantiveram-se os mesmos através dos séculos, simplesmente as suas reacções é que variam conforme as circunstâncias históricas. No momento em que o Português é chamado a desempenhar qualquer papel importante põe em jogo todas as suas qualidades de acção, abnegação, sacrifício e coragem e cumpre como poucos. Mas, se o chamam a desempenhar um papel medíocre, que não satisfaz a sua imaginação, esmorece e só caminha na medida em que a conservação da existência o impele. Não sabe viver sem sonho e sem glória.

Em todas as épocas se verifica o temperamento expansivo e dinâmico do Português. Desde as épocas mais remotas, nos tempos em que a actividade era a guerra, os Lusitanos foram a expressão mais acabada da luta permanente e sem tréguas, que se prolongou pela Idade Média nas lutas da reconquista contra os mouros, para se transformar, finalmente, nas viagens de descobrimentos e de colonização. É também sintomático os Portugueses terem participado em grande parte das guerras europeias, mesmo quando não tinham interesses directamente ligados a tais conflitos. Até a série de revlouções fraticidas do século XIX e princípios do século XX provam o fundo de permanente inquietação e actividade. Porém, essa actividade traz sempre consigo um cunho de ideal. Quase nunca se verifica a acção precedida de cálculo interesseiro e frio. Embora não lhe falte, por vezes, um fundo prático e utilitário, o grande móbil é sempre de tipo ideal.

A maior desgraça da nossa história, a infeliz campanha de Alcácer Quibir, em que desapareceu D. Sabastião, com a elite militar do seu tempo, não passou de um grande sonho vivido, de trágicas consequências. Mas a história está cheia de curiosos episódios, como o do Magriço e os Doze de Inglaterra, que vão defender em torneio umas damas ultrajadas por cavaleiros ingleses, a comprovar o fundo de sonhador activo do Português. Além disso, o desprezo pelo pelo interesse mesquinho e o gosto pela ostentação e pelo luxo nunca nos permitiram o aproveitamento eficaz das grandes fontes de riqueza exploradas. Os tesouros passavam pelas nossas mãos e iam-se acumular nos povos mais práticos e bem dotados para capitalizar, como os Holandeses e os Ingleses. Soubemos traficar, mas faltou-nos sempre o sentido capitalista. No século XVI, quando Lisboa era o grande empório do Mundo, sob o brilho do luxo já se ocultava a miséria. Gil Vicente descreve os fidalgos cobertos de rendas e brocados, com a sua corte de lacaios, mas sem dinheiro para comer. Ao contrário dos povos burgueses do Norte e Centro da Europa, o nosso luxo não é um requinte que resulte do conforto, é-lhe quase oposto; é mero produto da imaginação, e não dos sentidos. Ainda hoje temos as camas mais duras da Europa e as ruas estão repletas de automóveis de luxo. São poucas as casas ricas com aquecimento e muitas delas não têm uma sala de estar. Mas essas mesmas casas têm salas de visitas ou até salões de baile cheios de porcelanas da Índia e da China. As pessoas modestas, cujas casas são despidas do mínimo conforto, andam nas ruas vestidas com elegância ou com luxo. Um pequeno empregado de comércio, de pouco ilustração e educação, faz mais figura na rua do que um intelectual alemão ou suiço de boa família e com recursos. Da mesma maneira, qualquer empregadita, que mal ganha para se alimentar, anda vestida impecavelmente e pela última moda.

Outro constante da cultura portuguesa é o profundo sentimento humano, que assenta no temperamento afectivo, amoroso e bondoso. Para o Português o coração é a medida de todas as coisas. O sentimento amoroso é muito forte em todas as classes sociais, e fora o aspecto grosseiro, que se compraz em anedotas eróticas, são inúmeros os exemplos de grande e profunda dedicação, acompanhada de gestos de verdadeiro sacrifício. Não só a história como a literatura nos dão prova irrefutável da permanência desta característica através dos tempos. O exemplo mais curioso foi a grande paixão de D. Pedro por Inês de Castro, que nem a morte conseguiu extinguir e que ainda hoje serve de motivo poético e impressiona as sensibilidades. Na literatura basta lembrar a poesia medieval, tão sentida e original, em que com frequência se canta o amor da mulher pelo homem. A lírica de Camões, esse grande amoroso, dá-nos exemplos da mais bela e mais repassada emoção. As cartas de Soror Mariana Alcoforado, palpitantes de paixão veemente, os sonetos de Florbela Espanca, as poesias de João de Deus e muitos outros, sem esquecer a riquíssima poesia popular, particularmente impregnada de sentimento amoroso, são outras tantas afirmações desta constante alma portuguesa.

Mas, além da forma puramente amorosa, a afectividade portuguesa revela-se em relação aos parentes, aos amigos e aos vizinhos. O Português não gosta de ver sofrer e desagradam-lhe os fins demsiado trágicos. Daí talvez a pobreza do género dramático da nossa literatura e as soluções felizes que Gil Vicente soube dar a casos de traição conjugal, que em Lope de Vega ou Calderón acabam em vingança sangrenta. Outro aspecto curioso dessa característica são as touradas portuguesas, em que o touro não morre e vem embolado para não ferir os cavalos nem matar os homens. O espectáculo perdeu a intensidade dramática que tem em Espanha, mas ganhou em beleza, pela valorização do toureiro a cavalo, e mantém a nota viril da coragem física com as pegas, em que os homens medem forças com o touro, que é dominado a pulso. Cabe aqui acrescentar que em Portugal não existe a pena de morte, certamente como consequência dessa maneira de ser.

O Português tem um forte sentimento de indivudualismo, que se não deve confundir com o de personalidade. Enquanto a personalidade anglo-saxónica ou germânica não colide geralmente com os interesses sociais e só preza a sua liberdade individual, o Português, da mesma maneira que o Espanhol, tem uma forte ânsia de liberdade individual, que muitas vezes é anti-social. A tendência a opor-se a tudo que se lhe não apresente com carácter humano obriga-o a lutar contra as leis e organizações gerais. Detesta o impessoal e o abstracto e põe acima de tudo as relações humanas. O seu fundo humano torna-o extraordinariamente solidário com os vizinhos, e em poucas regiões da Europa existirá ainda vivo como em Portugal o espírito comunitário e de auxílio mútuo.

Mas qualquer organização geral que limite as liberdades individuais produz imediatamente um movimento de reacção em que todos são solidários. Um pequeno exemplo anedótico verifica-se no costume de os automobilistas fazerem sinais com os faróis a todos os carros com que se cruzam sempre que tenham visto a polícia das estradas para os porem de sobreaviso. A polícia, como representante da lei geral, é considerada como inimigo, e logo surge a reacção.


 

Nota: Este artigo foi retirado da obra Portugal como Problema da autoria do Dr. Pedro Calafate. O artigo foi adaptado à situação e não se encontra completo.

publicado por RiViPi às 21:03
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